O sonho insignificante demais para ser real



            Os portões de uma pacata escola estadual parecem enormes para as crianças, mesmo que elas estejam acostumadas a grandes prédios como os que se vêem no centro de Porto Alegre.
            Sala treze, turma sessenta e um, sexta série, dez e quarenta e cinco da manhã. Dona Eliza enche o quadro de equações de primeiro grau e sistemas de equações. São tantos xis misturados com ypsilons que a turma só de olhar já se sente cansada. Ricardo é repreendido pela professora de matemática:
            – Conversando de novo, Ricardo!? Eu já não agüento mais! Vá já conversar com a diretora! Conte sua situação, diga que não consegue calar a boca nas minhas aulas...
        Mas professora eu não fiz nada...
A senhora se indigna e aumenta o tom de voz, já quase um grito:
            – Chega Ricardo, eu cansei dessa história. Vai já para a diretoria que eu terminarei de passar a matéria e no fim da aula te encontro lá...
            – Mas Sora, eu prometo que...
            – Nada de “mas”. E se tu não estiver lá quando eu chegar tu vai ver Ricardo...
            E diante das ameaças decisivas o molequinho com gestos rudes passou a mão na mochila, empurrou os cadernos para dentro, puxou o estojo com a outra mão e saiu esbarrando em duas outras classes de colegas que o olhavam sérios. Quando a porta bateu atrás dele sentiu o calafrio do desanimo percorrer-lhe o corpo e agarrou o estojo com maior força. Tirou a mochila arrastadamente do ombro e colocando o estojo dentro dela foi fechando o fecho enquanto andava bem devagar. Com os olhos grudados no chão não tardou a perceber uma bolinha de papel amassado que algum piá esquecera jogada na hora do recreio. Chegando perto dela, chutou-a entediado, sentindo que o peso do mundo estava na mochila que ele carregava nas costas. Continuou caminhando cabisbaixo no corredor que agora estava vazio de risos e gritos de criança que o haviam preenchido meia hora antes. Com continuados chutes descansados na bolinha de papel, acabou chutando-a de maneira que ela foi parar num par de pés um pouco adiante. Ele que a princípio só via os pés, gordos e negros, de dedos fofos e espatifados no chinelo branco, gostou do contraste do branco com o preto, mas estranhou a princípio, pois não lembrava de quem era tão impressionante par de pés. Dos pés foi subindo o olhar devagar, encontrando a barra das calças azuis e subindo descobriu que o guardapó pertencia ao faxineiro da escola. O senhor bonachão lhe sorriu um sorriso gostoso de dentes alvos e francos. O menino parado, estava sem resposta ao sorriso conhecido e grandioso.
            – O que aconteceu, Ricardo? Não devia estar na aula esta hora?
            – Ah, seu Honório, a professora não acreditou em mim de novo. Foi tudo culpa do Luiz, aquele chato. Ficou querendo trocar cartas de Magic no meio da aula e ficava o tempo todo me chamando para conversar.           
            – E porque tu não disse a ela que a culpa foi dele?
            – Não ia adiantar, ela já pegou implicância comigo. Eu tenho um azar, sabe... Sempre que o Luiz ou o Rafa me chama ela não vê, mas quando eu vou responder o que eles perguntaram é que ela resolve olhar e eu é que sempre passo por bagunceiro, sacou?
            – Saquei, – Falou seu Honório imitando a gíria do menino com um ar divertido e logo em seguida se fingindo mais sério disse – mas é bom tu dar um jeito nessa situação, senão vai se dar mal, né!
            – Eu sei, só que não sei como... – e suspirou um suspiro longo – A vida é tão injusta. Eu nunca posso fazer o que eu quero... Ninguém nunca me entende.
            – Isso me parece uma história antiga que eu já ouvi em algum lugar.
            – Que lugar?
            – Não. É que eu quis dizer que isso já aconteceu comigo.
            – O que aconteceu com o senhor, seu Honório?
            – Isso de reprimirem a gente. Meu pai costumava ser muito assim: repressor. Não me entendia nunca, nem depois que cresci, se tu queres saber.
            O Ricardo olhava para o alto para alcançar os olhos negros do senhor que falava como se olhasse um infinito a sua frente, mas que na verdade buscava vasculhar as memórias de um passado um pouco distante. Não demorou e seu Honório lembrou de algo importante, fez sinal para que o guri o seguisse até uma janela do corredor que ficava ali perto.
            – Veja lá, Ricardo! – Falou ele apontando para o pátio do colégio.
            – O que? – Respondeu o menino que se debruçando no parapeito da janela não entendeu o que devia olhar lá fora.
            – Os cachorros do caseiro estão brincando felizes, se divertindo muito... – E apontava para os cães lá longe com um sorriso aberto. – Eles não estão preocupados com professoras chatas, nem com pais repressores...
            – É claro, né, seu Honório, eles não têm nenhuma preocupação a não ser se coçar o dia inteiro. Eu queria ser um cachorro, eles levam uma vida muito boa.
            – Mas nós também levamos. Veja eu, por exemplo, trabalho no que gosto. Sou feliz! Nem sempre foi assim, mas hoje sou.
            – Tu gosta realmente de ser faxineiro?
            – Gosto! Porque, não devia?
            – Não sei. É que o senhor, às vezes, parece ser tão esperto, saber tanto. Sei lá. Acho que merecia um emprego melhor que pagasse mais...
            – E para quê? Eu sou imensamente rico. Porque precisaria ganhar mais dinheiro?
            – O senhor é rico?
            – Sou. Porque o espanto? Só porque não ando com um carrão por aí ou fico vivendo numa mansão coçando o saco pelo resto da vida, isso significa que não sou rico?
            O menino ficou sem resposta e olhou aturdido o senhor negro que voltou a observar os cães que brincavam de pegar um ao outro incansavelmente numa alegria infantil.
            – Veja como eles brincam só pelo prazer de brincar. São incansáveis e não ligam para as diferenças que um tem para com o outro. Observe que o pequeno é bem mais rápido que o grande. Este por sua vez, é bem mais forte, mas não machuca o outro, o respeita. Todas as mordidas que um dá no outro são medidas de modo que não possam machucar. Tudo é brincadeira. Em nenhum momento, nenhum deles pergunta porque o outro é de cor diferente ou de outra raça, ou ainda porque o outro é mais lento, bonito ou forte. Eles são felizes assim, só por ser. É a paz da consciência de quem não exige nenhum pré-requisito para a felicidade.
            – Tudo isso é muito bonito, senhor Honório, mas eu não acredito que o senhor é rico, não! E, além disso, ainda estou com raiva da minha professora...
            – Eu não esperava mudar sua opinião com minhas palavras.
            – Não?
            – Não! Só pensei que talvez tu quisesses ouvir uma história antiga de um velho cansado como eu que só está querendo desabafar um pouco...
            – Se é assim, pode contar sem grilo. Eu quero ouvir!
            Honório olhou mais uma vez o azul infinito do céu e respirou um ar maravilhoso que preencheu seus pulmões completamente. Buscando inspiração nos formatos das nuvens, deu uma entonação diferente a voz e começou:
            – Meu pai queria que eu fosse advogado, mas esse não era meu sonho na vida. Ele não conseguia entender meu sonho. E por muitos anos insistiu nessa história de advocacia, até que eu não suportei mais e como filho obediente que sempre fui, cedi a suas pressões. Fiz a faculdade de direito há muitos anos atrás, quando tu e essa criançada toda aqui nem tinham nascido. Logo que me formei meu pai me colocou para trabalhar com ele em seu escritório. Era numa sala rica e bem adornada que eu passava a maior parte de meus dias recebendo clientes e revisando processos. Não tardou para que o nome e a influência do meu pai me tornassem tão famoso advogado quanto ele próprio o era. No entanto, eu era infeliz. Nunca gostei de direito. Nunca suportei o código civil e as pessoas com as quais eu convivia. Era escravo do trabalho e todas as diversões dos fins de semana eram apenas frivolidades que me entediavam cada vez mais...
            – Seu Honório. – Chamou Ricardo com cara de preocupado.
            – Diga, Ricardo. A história tá ficando chata? É isso?
            – Não, é que eu não entendi o que é frivoli... frivolida...da... – E fez uma cara de quem se esforça para lembrar. Era uma cara meio de nojo, meio de dúvida.
            – Frivolidades?
            – Isso aí que o senhor falou. O que é isso?
            – Bom, são coisas pouco importantes. Como... ãh... como brincos de meninas, entende? Não são importantes, só servem de adorno. Se alguma guria deixar de ter não vai fazer diferença.
            – Ah! E o senhor não gosta de brincos de meninas...
            – Não é isso! É que... Como vou te explicar? –fez uma breve careta puxando a boca para o lado direito – Eu gosto mais da natureza no seu estado puro, entende? Gosto das meninas como elas são. Gosto das coisas simples e de como elas simplesmente acontecem de forma perfeita. Como se tudo tivesse sido programado, sincronizado e idealizado por um ser superior. E ao mesmo tempo por tudo ser tão perfeito assim é que não conseguimos perceber a perfeição que há em toda esta sincronia de acontecimentos. Acho isso magnífico!
            – Nossa! Não entendi metade do que o senhor disse, mas a parte que eu entendi era bonita. Tu falou de Deus, não falou?
            – É, falei sim. Mas sabe o que é o melhor? Mesmo esse seu “não entender” o que eu estou falando faz parte dessa simplicidade perfeita de que falo e que a todo o momento me maravilha.
            – Às vezes, o senhor é tão complicado, seu Honório. Mas me conta, como terminou sua história?
– Bem, eu saí de casa e me casei com uma escritora de livros infantis. Ela me ensinou que eu não devia desistir dos meus sonhos e se não estava feliz com aquele emprego deveria procurar outro. Disse que me daria todo o apoio e realmente deu. Ela não riu do meu sonho como meu pai tinha rido. Me contou uma coisa muito importante. Contou que nenhum sonho é insignificante demais para ser real e que eu tinha o direito de sonhar o que quisesse. Afinal, o sonho era meu e só dizia respeito a mim.
– E qual era seu sonho, seu Honório?
– Era me tornar faxineiro de uma escola, de preferência pública.
– Mas por que? Desculpa dizer, mas o senhor é meio louco, não é?
– Eu já lhe disse porque. Eu queria viver uma vida pacífica, onde pudesse observar a poesia das coisas se formando na simplicidade daqueles que só conseguem agir com a pureza dos que ainda não foram denegridos e seduzidos pelos prazeres do mundo. Gosto de observar as pessoas que não tem por principal objetivo na vida enganar os outros e se aproveitar deles para conseguir fama e fortuna. Gosto de estar longe das pessoas que criam motivos para passar por cima dos outros. Prefiro viver assim, sem que ninguém me note, todos me considerando como alguém inferior, sinto-me bem por ser subestimado, porque sei das minhas capacidades e prefiro mantê-las comigo, para somente serem usadas quando realmente forem úteis e necessárias. Meus pensamentos são só meus e me nego a deixar alguém manipula-los.
– Sabe...Eu também tenho um sonho. Consegue adivinhar qual é?
– Não sei, mas sei que tu vai me contar qual é. Porque a essa altura tu já percebeu que eu não sou nenhum velho cansado que precisava desabafar...
E o senhor sorriu um sorriso novo daquele seu jeito antigo. A conversa seguiu até que a professora chegou furiosa ao corredor, contudo, ela encontrou um menino diferente...


Andréia Cristina Saffier